NotUrna

a morte é um projeto coletivo
project by Lucas Simões and Roberta Ferraz
projeto de Lucas Simões e Roberta Ferraz


“Todos esses jovens fotógrafos que se agitam no mundo, dedicando-se à captação da atualidade, não sabem que são agentes da Morte. É o modo como o nosso tempo assume a Morte: sob o álibi denegador do terrivelmente vivo, de que o fotógrafo é, de certa forma, o profissional. Porque, historicamente, a Fotografia deve ter alguma relação com a ‘crise da Morte’, que começa na segunda metade do séc. XIX; e, pela minha parte, preferiria que, em vez de se colocar constantemente o advento da Fotografia no seu contexto social e econômico, se pudesse também em questão a ligação antropológica da Morte e da nova imagem. Porque, numa sociedade, a Morte tem de estar em qualquer lado; se ela não está (ou está menos) no religioso, deve estar em qualquer outra parte. Talvez nessa imagem que produz a Morte, pretendendo conservar a vida. Contemporânea do recuo dos ritos, a Fotografia corresponderia talvez à intrusão, na nossa sociedade moderna, de uma Morte assimbólica, fora da religião, fora do ritual, uma espécie de mergulho brusco na Morte literal. A
vida/morte: o paradigma reduz-se a um simples disparo, aquele que separa a pose inicial do papel final. Com a Fotografia, entramos na Morte crua”.
(Roland Barthes. A Câmera clara).

NotUrna é o titulo do livro de artista desenvolvido por Lucas Simões e Roberta Ferraz, criado a partir de pesquisas que se iniciaram em 2011, sobre a relação entre identidade / imagem / morte, centrando-se principalmente nas foto grafias de retratos de túmulos como ponto de partida de investigação. Lucas Simões dá seguimento ao seu trabalho autoral, em artes plásticas, envolvendo o tema da desconstrução da imagem: do garimpo diluidor dos retratos e seus segredos guar dados, mesmo depois do destrinchar do rosto (série desretratos / desmemórias), da movência dos territórios em sua percepção interior/exterior, da orquestração da beleza móvel e fugidia na lapidação do microinstante da imagem (série quase cinema), etc. Roberta Ferraz, escritora e pesquisadora de literatura portuguesa na USP, também partilha do mesmo território de indagações, com pesquisa centrada principalmente em temas que envolvem a relação entre literatura e ausência.

A soma das pesquisas individuais aconteceu de forma espontânea, levando¬os a questões como: o que nos impulsiona a guardar registros de nossa futura morte? Como nos guardamos/colecionamos no nosso futuro que é ausência? Como e em que nos fazemos durar? Qual o pacto que tecemos com o tempo (e a morte) através da fotografia? A fotografia nos garante um passado de existentes, nos devolve à bio grafia? Quando olhamos nosso retrato, que fenda se abre? Quem é ali? Que pen samento e sentimento são capazes de perdurar no suporte do retrato? Qual o efeito de um rosto na fotografia?

A partir de imagens fotográficas feitas sobre retratos tumulares e escrita de biografias inventadas pelos dois artistas e por mais de 50 convidados, procura-se uma construção em fragmentos (em objetos móveis, rearticuláveis) de um grande livro (urna) que contem em si outros cinco pequenos livros/objetos. O projeto No tUrna envolve, portanto, acolher estas indagações todas e transformá-las em objetos capazes de sustentá-las e fazê-las ecoar, suscitando assim um estendido diálogo a respeito de nossa imagem / morte / identidade. Cada Livro compreende uma Urna, rememorando uma longa tradição de ritual fúnebre, já que a urna resgata a imagem do vaso que era usado tanto para conter líquidos como para depósito das cinzas dos mortos, ocasião em que contavam, os vasos, com desenhos ao redor, imagens pré¬fotográficas que ilustravam algo da vida do falecido, de forma simbólica ou alegórica. Este trabalho propõe, portanto, e acima de tudo, mobilizar o outro, por meio da intervenção plástica e textual de retratos de lápides, para a matéria íntima que há entre fotografia e morte.

A vida é feita assim de pequenas solidões. Pense a solidão, súbita, de um retrato, uma fotografia, aquele pasmo de tempo impresso em papel, pintado, químico, folha de ataraxia, imagem descolada de um corpo que avança, impreterivelmente, para a própria morte. A fotografia de um rosto será mais movente e invisível que um rosto no espelho? Testemunha que outra forma que se decalca de nós? Leva o que acaba de ser instantâneo para o registro do remoto? Não estamos, estando, estivemos. Tempo. Outra coisa, a mesma. E alguém se pergunta: O que nos abre ao fascínio da imagem, da imagem específica de um rosto, um retrato?

Desde que somos egípcios sentimos falta de um objeto outro, exterior, que nos represente, que nos informe sobre como seríamos na exterioridade de nós mesmos. Então moldamos o barro alheio, inventamos um mundo, nomeamos o que sonhamos nosso. Em nós: o vivo agora infatigável. E dizendo, damos formas ao vivo, encontrando a meada da semente: como dizer, dar formas àquilo que constitui o vivo? Como modelar a morte?

No sarcófago, nos túmulos de mármore em que selamos à pedra o volume de nosso corpo inerte, símile da própria pedra, talvez algo se afine, um paralelismo se dê. Mas nunca o impacto do congelamento de nossa imagem foi tão certeiro como na fotografia. A fotografia não representa, não imita: a fotografia rouba, captura, toma. É por isso que usamos a expressão ‘tirar uma foto’, em diversas línguas. Tiramos de nós uma pele, na fotografia; ela nos rouba um instante que talvez jamais tenha sido, rasgando nossa imagem, nossa identidade, nossa percepção do tempo. A fotografia é uma arte elegíaca, talvez a mais densa das elegias.

Será por isso que vamos para a morte com ela, com nosso retrato? Qual o élan da morte que faz durar o retrato? Repare, nos cemitérios, como, às vezes, as pedras em que constam os nomes vão se fundindo num limo e numa gastura, rasurando o nome, apagando-o; mas o retrato oval, guardado num suporte de cerâmica ou envidraçado, não. O retrato quer durar, ou por alguma química oculta, se faz presente por mais tempo neste lugar, neste território, enfeitando a ausência coletiva de vida do jardim dos mortos.

NotUrna é uma urna que não se fecha, uma urna-barca aberta, testemunha da quantidade de sobras, restos e fragmentos que compõem o encontro entre retrato e morte, tão involuntários quanto irrevogáveis. O livro se desmonta em perguntas sobre perguntas: O que nos leva a guardar registros de nossa futura morte? Ou seja, por que nos fotografamos com tanta insistência? Como nos guardamos/colecionamos no nosso futuro que é ausência? Como e em que nos fazemos durar? Queremos que os outros nos guardem de nossa própria e alheia extinção? O retrato como testemunha mais fidedigna de ter havido um rosto? Qual o pacto que tecemos com o tempo (e a morte) através da fotografia? A fotografia nos garante um passado de existentes, nos devolve à biografia? Quando olho o meu retrato, que fenda se abre? Serei o que fui? Sou quem? Quem foi em mim? Fui quem serei? Que pensamento e sentimento são capazes de perdurar no suporte do retrato? Resgato, pela imagem, o que sentia, na ocasião de sua captura? Qual o efeito de um rosto na fotografia? Fotografo a mim mesmo ou deixo-me fotografar, como uma maneira velada (e silenciosa) de participar de minha própria morte? Ou busco na fotografia uma tentativa desesperada de não lidar com ela?

Esqueço-me, a fotografia é uma imagem, imagens são suportes de todo sonho, de qualquer desejo. A imagem não é vínculo inexpugnável com o retratado, com a biografia histórica em linha reta. A imagem é uma palavra: mãe, por exemplo; destino, por exemplo; voz, ainda. Tudo cabe na imagem e por mais fixo que se pretenda um retrato, nada mais amplo e esvaziado, terreno baldio de qualquer momentânea possessão.

Quando partimos, quem é que somos? Quem é que podemos ser? Quantas narrativas se somarão sobrepostas à nossa imagem? Ou ainda, aquela imagem que dizia de nós, diz de quem, agora? Esta reversibilidade da imagem, de congelamento/reinvenção é o que nos impulsiona, neste trabalho, como possíveis indagações ao tema trabalhado: o momento em que a imagem de um rosto deixa de ser um retrato pessoal e passa a ser um rosto qualquer, uma máscara coletiva, um quem-qualquer, sem verdade e biografia concentrada, mas, pelo contrário, oferecendo-se como um dispositor de narrativas variadas, inúmeras, uma fábrica de imagens, um estímulo criador, um motor de vida. Um ilusionismo, como uma faca, com seus dois lados. Mutila e Multiplica.

Este trabalho não poderia ser feito por um, por dois. Resulta de uma gama coletiva de experimentos, encontros, noites desassossegadoras, em que, ao lado de amigos, ou com amigos pelo correio, nos sentamos frente ao retrato em toda sua extensão: dos selfies mais velozes ao único retrato final, lapidar, escolhido por alguém, quem? qual a linha que une e separa a fotografia incessante do nosso fetiche pela própria imagem e autoimagem, do tabu fotográfico que devotamos, mesmo sem perceber, ao retrato posto no túmulo? Não são, afinal, a mesma imagem?


images of the books





images of the exhibition and corpse workshop at Pivô


images of the exhibition and talk at Instituto Figuereido Ferraz


 

Corpse workshop at Mário de Andrade Library



images of the exhibition and talk with the authors at Galeria Emma Thomas

Colaboradores:
Alessandro Aguipe, Andrea Catropa, Ana Cristina Joaquim, Bruno Almeida, Carolina Bertier, Caroline Valansi, Daniela Nagy, Fernando Falcon, Fredereic de Mariz, Gabriel Kolyniak, Gui Mohallem, Guilherme Coube, Ian Thomaz Puech , Isabel Nicolielo, Isabella Lotufo, Isadora Krieger, Ivo Barroso, Jota Desconci, Julieta Bacchin, Jurandy Valença, Laura Magri, Leandro Lopes, Lilian Aquino, Lilian Jacoto, Lucas Tozo, Luis Maffei, Maiara Gouveia, Marcelo Oliveira, Mariana Whately, Marta Ramos Yzquierdo, Natália Goulart, Paulo Gallina , Pedro campana, Philipe f augusto, Renata Huber, Ricardo Gil Machado, Rodrigo Sampaio, Romeu Mizuguchi, Sofia Mariutti, Virginia Resende, Virna Teixeira